No dia 21 de dezembro de 1955, Juscelino Kubitschek, às vésperas de sua posse, presidiu em São Paulo a cerimônia organizada para fundição do primeiro bloco de motor diesel para caminhões. Vazando o ferro líquido no molde de areia desse primeiro motor fabricado no Brasil, o novo presidente da República inaugurava sua produção em escala industrial pela Sociedade Técnica de Fundições Gerais - Sofunge, para a Mercedes-Benz do Brasil.
Logo depois da posse, em janeiro de 1956, Juscelino divulgou seu Plano de Metas, incluindo entre elas o desenvolvimento, "a curto prazo", da indústria automobilística, para o que foi instalado, em 16 de junho daquele ano, o Grupo Executivo da Indústria Automobilística - GEIA, órgão responsável pelo estabelecimento dos índices de nacionalização da indústria automobilística.
Dezoito meses depois da criação do GEIA, fez-se um balanço das atividades do setor, contando-se 17 grandes empresas com projetos aprovados pelo governo, além do registro de outras 821 fabricantes de peças, com planos de expansão igualmente aprovados. No final de 1958, o GEIA já aprovara 56 projetos, número que passou a 86 no ano seguinte e a 21 em 1960, somando-se 202 projetos em 5 anos (1956-1960). Quanto às indústrias, dos 17 projetos aprovados, 11 foram concretizados (FNM, Ford, GM, International Harvester, Mercedes-Benz, Scania-Vabis, Simca, Toyota, Vemag, Volkswagen e Willys), o que incentivou a expansão do setor de autopeças, cujo número de fábricas chegou a 1.200, em 31 de dezembro de 1960. Além disso, no que se refere aos índices de nacionalização, dados de final de 1960 confirmam que eles foram atingidos e, em alguns casos, até ultrapassados.
Por detrás de todos esses números e dados, reflexos de intensas lutas políticas travadas durante todo o governo JK, é necessário buscar elementos qualitativos que o entusiasmo estatístico não mostra. Obviamente, os veículos produzidos por todas essas indústrias acabaram invadindo ruas e estradas, mudando para sempre a feição das cidades e criando hábitos que jamais admitiram recuos. Por suas dimensões e profundidade, como não poderia deixar de ser, o desenvolvimento desse setor industrial produziu efeitos em várias direções, atingindo também diretamente o mercado da força de trabalho.
E foi graças a esse contexto que, na segunda metade da década de 1950, os ferramenteiros conquistaram posição de destaque como mão-de-obra qualificada e de importância estratégica, a partir do momento em que a demanda por esses profissionais cresceu, por conta dos planos de nacionalização da indústria automobilística, quando as montadoras tiveram de programar a substituição de suas matrizes para estampagem, até então importadas, por outras produzidas no Brasil.
Entretanto, como recordou um ex-professor do SENAI, na segunda metade da década de 1950, não havia ferramenteiros no Brasil, exceto um grande número de espanhóis, que dominavam o trabalho de ferramentaria. Naquela mesma época, a Willis-Overland do Brasil, hoje adquirida pela Ford, havia contratado com uma empresa americana, ligada ao grupo Chrysler, ao qual a Willis pertencia, a preparação de ferramenteiros no Brasil.
A escassez desses profissionais especializados fazia com que fossem disputados freneticamente pelas indústrias, havendo memória de práticas esdrúxulas adotadas para convencê-los a mudar de emprego: - Psicólogos, especialistas em recrutamento, vestiam macacão, arranjavam uma bicicleta, se postavam na porta das empresas na hora da saída ou da entrada e tentavam identificar quais eram os ferramenteiros. E se dirigiam diretamente a eles, e tentavam convencê-los a mudar de empresa, que ofereciam mais salários etc. Houve casos em que o ferramenteiro retornava à mesma empresa, seis meses depois de deixá-la e após trabalhar em outras duas ou três, passando a receber um salário cinco a seis vezes maior do que o inicial.
Esses expedientes, contudo, revelaram-se insuficientes para suprir as necessidades da indústria, especialmente no que se referia ao setor automobilístico, em franca expansão. O Senai decidiu envolver-se, então, diretamente na preparação de ferramenteiros para o mercado, inaugurando, em 1960, seu primeiro curso de ferramentaria, na Escola Roberto Simonsen, em São Paulo. O sonho de ser ferramenteiro: razões da escolha profissional
Quais foram as razões que levaram muitos jovens a escolherem a profissão de
ferramenteiro? Como se sabe, já que a escolha da profissão constrói destinos e
determina rumos para toda a vida, a reflexão que sobre isso fizeram os próprios ferramenteiros tem muita importância para se compreender uma das questões centrais desta monografia.
Para trabalhar o tema, foi utilizado, inicialmente, o cadastro existente no Senai - Departamento Regional de São Paulo, formado a partir de dados de profissionais ferramenteiros envolvidos com projeto interno de descrição de perfis profissionais, estudo e validação do currículo do curso técnico de ferramentaria em reformulação pela entidade. Esse universo de pesquisa, depois ampliado, por abranger ferramenteiros em atividade em indústrias de porte variado, localizadas nos Estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, ofereceu valiosos subsídios para considerar inúmeras questões postas em discussão nas visitas e entrevistas realizadas. Registre-se, ainda, que a pesquisa foi feita com profissionais que permaneceram na profissão após essa escolha inicial, não sendo possível, por razões claras, o envolvimento de ferramenteiros que mudaram de atividade ao longo de sua vida profissional.
Nos casos considerados, 11 na maioria das vezes, a inspiração veio de familiares e amigos, sendo alimentada pelo desejo da realização profissional, além da vontade de superar limites de condições sociais pouco favoráveis. Depois, foram recordados os primeiros tempos de formação, o desenvolvimento da competência frente aos desafios do mundo da fábrica, as oscilações tantas vezes profundas do mercado de trabalho, as conseqüências das mudanças tecnológicas, as satisfações e frustrações cotidianas...
Juntando as recordações de todos eles, surgem as motivações dos passos iniciais e decisivos da trajetória profissional, revividos com emoção e orgulho.
No caso de Eguinaldo Buday (Mahle), que ingressou na ferramentaria em 1978, o exemplo veio do pai: "Meu pai era retificador. Na época, meu pai trabalhava como retificador, chegava em casa cheirando a óleo, aquele óleo natural... A retífica solta muito óleo. Quando eu fui ao Senai escolher, tinha várias funções, e por ter ido à firma do meu pai, ter visto o trabalho dele, eu optei pela retífica, porque a retífica é uma coisa mais aprimorada, ou seja, ela não é simplesmente quadrada como a fresa. E outra coisa, a retífica, na minha opinião, é uma coisa em que você trabalha com as peças no seu final, ou seja, prontas, e foi isso que me fez escolher a retífica".
Roberto Pereira (Daimler Chrysler/Mercedez-Benz), por sua vez, começou seu trabalho de ferramenteiro em 1970, seguindo o exemplo do irmão: "Em princípio, eu me espelhei no meu irmão. Ele era ferramenteiro e, na época, o ferramenteiro era graduado, era um grau abaixo de um engenheiro na época. Era bem remunerado..."
Depois de fazer vários cursos profissionalizantes, Benedito Andrade da Silva (Sindicato dos Metalúrgicos de SP) optou pelo técnico em mecânica, decidindo-se por ele porque já trabalhava como ferramenteiro, mas desejava uma classificação ocupacional de nível técnico. O curso foi feito na Escola Técnica Federal, em São Paulo (atual Cefet), onde hoje são oferecidos cursos superiores na área de tecnologia de automação da manufatura. No começo de sua vida profissional, continuou ferramenteiro, a quem define como o profissional que "trabalha com a confecção do metal, desde a parte de requisição do material, do metal, passa pelo processo de usinagem, acabamento e depois ele tira o produto de um equipamento para poder produzir numa prensa muitas peças, um lote de peças diariamente. Então ele faz, na verdade, um equipamento, uma ferramenta que vai obter um lote de produtos diariamente. Isso exige habilidade manual, principalmente de ajustagem com limas, mas também exige operação de máquinas".
Há casos em que a influência de amigos foi decisiva para a escolha da profissão, como aconteceu com Valdecir Osteti (Siemens): "Quando eu fazia o ginásio, os colegas de escola me influenciaram a conhecer o Senai. Chegando lá, nem tinha idéia do que eu ia fazer, na verdade. Eu peguei um panfletinho do Senai e comecei a ver, ainda sem me decidir. Voltei ao Senai e conversei com alguns professores que me explicaram o que se fazia em cada profissão. Eu me identifiquei com a área de mecânica e comecei a fazer o curso de ajustador mecânico".
Muitas vezes, decidir-se pela ferramentaria foi a opção primeira para ajudar no sustento da família, quando se buscava ingressar no mercado de trabalho pelas portas atraentes das ocupações mais valorizadas, como aconteceu com Francisco Chaves Araújo Filho (Alumbra), que começou a trabalhar no final de 1971, com treze anos de idade: "Por ser arrimo de família, fui obrigado a ingressar na indústria logo aos doze, treze anos de idade. Também, ouvindo dizer que ferramenteiro era bem conceituado na empresa e ganhava muito bem, eu almejei esse sonho e consegui chegar ao alvo".
Por razões claras, os elevados salários pagos aos ferramenteiros, graças, principalmente, à escassez desses profissionais no mercado, estão entre as primeiras causas lembradas para explicar a sedução que o ambicionado posto exercia sobre os jovens trabalhadores. No depoimento que deu ao Projeto Memória do Senai/SP, em fevereiro de 1992, Wander Bueno do Prado falou das razões que o levaram a escolher a profissão de ferramenteiro, bastante valorizada no início da década de 1960: "Meu sonho era ser ferramenteiro. Naquela época, era o profissional que ganhava mais dentre os operários". Entretanto, o sempre referido sonho de ser ferramenteiro era animado por outros fatores, ligados diretamente à natureza da profissão, como recordou o mesmo trabalhador: "Na minha época, na fábrica, o ferramenteiro era considerado um artesão; quer dizer, ele não tinha grandes máquinas, ele fazia a peça como se fosse uma escultura, uma coisa dele. Trabalhava desde o primeiro processo até o último. Era dele. Dava acabamento... Por isso, eu acho que ele era considerado elite dentro da fábrica, porque não é qualquer um que tem habilidade de fazer um trabalho artesanal como ele fazia".
Anos depois, quando recompõem a memória de sua vida profissional, todos esses trabalhadores referem-se, orgulhosos, à nobreza da ferramentaria, um status que os sobressaltos da vida econômica e a informatização não conseguiram reduzir. E sequer as incertezas do futuro ou as situações conjunturais mais difíceis ameaçam a profissão, sendo digno de registro que os jovens profissionais, mesmo desconhecendo a história da ferramentaria, ao falar sobre ela, destacam características semelhantes àquelas referidas pelos trabalhadores mais velhos.
* Esse texto faz parte da monografia A Família ocupacional de ferramenteiros e afins", publicado pelo Senai em 2002.
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